A entrevista de Paulo Rangel ao programa Alta Definição, da SIC, deu merecidamente que falar. Penso que a maioria das pessoas que escutaram e visionaram o desempenho do eurodeputado ficou agradavelmente surpreendida. Quase sempre a capacidade dos nossos actores políticos para irem além do léxico que julgam dominar é muito escassa. Mesmo fora dos conhecidos casos de narcisismo hiperbólico, ou de falsa segurança (“nunca me engano e raramente tenho dúvidas”), outros protagonistas conjunturais acabam por usar o direito de reserva sobre a sua vida pessoal para justificar o silêncio, ou evasivas e estereotipadas efabulações. Fica mesmo a suspeita de que, quando se apagam os holofotes do espaço público, muitos dos decisores sobre a vida de todos nós, ao mergulharem dentro de si têm de levar um cantil bem cheio para não perecer na travessia do seu deserto interior. Paulo Rangel, perante uma dupla campanha – devido à sua homossexualidade e a um vídeo, com vários anos, onde caminharia numa rua de Bruxelas, com um passo que indicaria embriaguez – reagiu com inteligência e coragem. Assumiu a sua homossexualidade e não escondeu o facto de, por vezes, em convívio com amigos poder beber para além da conta. Mais ainda, o entrevistado admitiu ter passado por uma crise pessoal, certamente depressiva, que só teria superado com ajuda médica.
Alguns articulistas censuraram em Paulo Rangel várias inconsistências e esquecimentos. Num artigo que considero fundamentado e sóbrio, Fernanda Câncio (DN, 07 09 2021) analisou as contradições entre a insistência do entrevistado em querer despolitizar a questão da homossexualidade, remetendo-a para a esfera privada, e o facto de isso continuar a ser usado para destruir as carreiras políticas e de serviço público de muitas pessoas competentes, em todas as esferas institucionais. Quanto aos esquecimentos, a jornalista também foi certeira ao recordar a posição anterior de Paulo Rangel, como líder parlamentar do PSD, votando contra a legislação anti-homofóbica, a mesma que aprovada ao longo das últimas duas décadas permitiu ao entrevistado sentir-se, agora, mais à vontade para se assumir publicamente. Essas críticas não invalidam, contudo, reconhecer que Paulo Rangel manifestou nesta entrevista uma qualidade intelectual e pessoal que o colocam num plano muito destacado, e não apenas no seu partido.
Gostaria ainda de salientar um aspecto na entrevista onde Paulo Rangel, mesmo involuntariamente, deu matéria para o pensamento. Ao entrar na delicada esfera da relação com a família, sobretudo com os pais, percebeu-se que o entrevistado viveu até à morte de sua mãe um dilacerante conflito entre o incondicional amor pelos seus pais e o respeito por si próprio, pois não é difícil imaginar o imenso sofrimento moral de alguém que nunca conseguiu confessar aos pais a sua identidade amorosa profunda. Direi mesmo que Rangel, ao afirmar ter demorado muito tempo a perceber a sua homossexualidade, está ainda a manifestar uma lealdade filial incondicional, numa relação assimétrica, flagelada pelo preconceito parental, que lhe impediu de ser verdadeiro, não apenas para com eles, mas consigo próprio. Como membro da maioria heterossexual, aquela que não tem nada a esconder nem a perder, penso que o serviço prestado por Paulo Rangel aos pais e mães que o escutaram se poderia traduzir nesta interrogação: até onde vai o amor pelos vossos filhos, se o vosso preconceito os obriga a ocultar o mais profundo de si próprios?
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias de 11 de Setembro de 2021