A única coisa comum entre as derrotas dos EUA no Vietname e no Afeganistão são as imagens de pânico da população no aeroporto de Cabul, mimetizando as dos fugitivos da Embaixada dos EUA na Saigão de 1975. Na sua obra sobre o período de ouro da hegemonia de Washington, A República Imperial. Os EUA no mundo 1945-1972 (Calmann-Lévy, 1973), Raymond Aron explica-nos a complexidade dos motivos (políticos, económicos, estratégicos…) das intervenções dos EUA. A guerra do Vietname foi claramente um erro grave numa análise de custo-benefício estratégico, mas o método e a argumentação que levaram a essa intervenção não foram absurdos, no quadro de uma lógica moldada pela severa pressão da guerra-fria, num sistema internacional de hostil bipolaridade. O mesmo não se poderá dizer da sucessão de desastres em que redundaram as intervenções externas dos EUA, de pequena ou grande escala, ao longo deste século.
A intervenção dos EUA no Afeganistão, recordo para os mais esquecidos, foi fortemente apoiada internacionalmente, no contexto do ataque de 11 de Setembro, perpetrado por um comando de terroristas sauditas ligados à Al Qaeda. A NATO e a ONU apoiaram a acção de Washington contra o refúgio da Al Qaeda no Afeganistão dirigido pelos talibãs, cujo regime apenas era reconhecido pelo Paquistão, Emiratos e….Riade. O problema reside na posterior mudança de objectivo. A punição transformou-se numa operação de mudança de regime, política e militarmente insensata, convergente com a maior mentira da política externa norte-americana que foi a justificação da invasão e ocupação do Iraque, inventando uma espúria ligação entre o sunismo laico de Saddam Hussein e o 11 de Setembro, enquanto se desviava a atenção dos fanáticos sunitas apoiados pela dinastia saudita. No saldo final, ainda longe de poder ser fechado, os soldados norte-americanos mataram e morreram para deixar atrás de si um Iraque totalmente entregue à esfera de influência dos fundamentalistas xiitas que governam o Irão, e um governo talibã em Cabul, que antes de completar a sua vitória já está a ser reconhecido por grandes potências. Para a UE sobra uma fronteira externa mais perigosa, com mais milhões de refugiados no horizonte. Responsabilidades partilhadas também por Sarkózy e Cameron pela destruição da Líbia e pelas promessas incumpridas aos insurgentes, que prolongaram os sofrimentos da guerra civil síria.
Joe Biden está a pagar, nas sondagens e nas críticas dos desempregados da NATO que esta saída provoca, a herança envenenada de George W. Bush, Jr,, que Obama não teve fibra para corrigir. Em 2008, Joseph Stiglitz e Linda Bilmes estimavam em três biliões de dólares os custos, só da guerra do Iraque (The Three Trillion War, W.W. Norton,). Isso corresponde a quase três vezes o valor total do pacote (ou “bazuca”) da UE-27 para a recuperação pós-pandémica. Stiglitz e Bilmes indicavam os nomes e os enormes ganhos em bolsa de algumas empresas do “complexo industrial-militar”: Halliburton (229%), General Dynamics (134%), Raytheon (117%) Lockhed Martin (105%) e Northrop Grumman (78%). Os EUA, tanto pela sua absurda deriva bélica como pelo péssimo desempenho perante a ameaça ambiental e climática, perderam muito do seu capital de credibilidade. Talvez a coragem de assumir a verdade desta derrota já antiga permita a Washington recuperar aquele mínimo de respeito, sem o que não é possível nem conter os adversários nem contar com aliados confiantes e confiáveis.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, na edição de 21 de Agosto 2021, página 11.