A 22 de abril passam 300 anos sobre o nascimento de Immanuel Kant (1724-1804). Prussiano, viveu como professor na Universidade de Königsberg, hoje a cidade russa de Kaliningrado. A sua obra pertence a uma galáxia superior do espírito. Na história da Filosofia ocidental, ele figura ao lado de uma reduzida minoria: Platão, Aristóteles, São tomás de Aquino, Espinosa…Desde a sua morte, milhares de estudiosos têm-se dedicado à interpretação do seu pensamento, mas é uma tarefa inacabável (e para os apressados, uma proeza impossível…). Portugal não está ausente da sua obra. Dedicou três pequenos ensaios ao terramoto de Lisboa de 1755 (publicados em 1955 pela CM de Lisboa). Nos seus estudos de Geografia menciona a orografia portuguesa, e outros territórios, na altura colonizados por Lisboa. Muitos anos antes das invasões francesas, Kant previu que tal iria suceder, numa impecável análise geoestratégica.
Kant foi o filósofo da paz, por excelência. Não da paz de um pacifismo débil e fantasista, mas da paz como tarefa e objetivo central da história europeia e mundial. Ao contrário de outros pensadores do seu tempo, e do século XIX e XX. Kant não escolheu como alfa e ómega do progresso humano a inventividade tecnológica. As guerras do século XVIII já eram suficientemente sangrentas para ele antecipar a possibilidade de carnificinas muito maiores. A sua aposta não foi no domínio da Natureza pela técnica, mas no autodomínio das forças autodestrutivas que se agitam no seio da alma humana. Para isso, a humanidade tinha alguns instrumentos, incapazes de dar garantia de sucesso, mas impossíveis de não serem tentados. Kant apostava na tese de que a paz só seria possível se os Estados retirassem a faculdade de fazer a guerra aos monarcas, ou a uma elite que dela tirasse proveito próprio. Para tal era defensor da generalização de constituições republicanas, de regimes representativos com separação de poderes, que dessem ao povo, de onde saem sempre os solados e as vítimas da guerra, uma voz na decisão de seguir o caminho da diplomacia ou das armas. Mas era preciso ir mais longe. Os Estados deveriam constituir-se numa organização internacional, que Kant batizou de vários modos: “Liga dos povos”, “união de Estados”, “Congresso permanente de Estados”. Não se tratava de uma federação, como os EUA. Ainda menos de um Estado mundial. O que Kant propunha aproxima-se das duas organizações internacionais para prevenir a guerra, criadas no século XX (a SDN e a ONU). Só através da garantia da paz internacional seria possível realizar “por inteiro uma doutrina do direito dentro dos limites da simples razão” (Kant, 1797).
A Europa nada aprendeu com as duas guerras mundiais por ela causadas. A OTAN foi criada para defesa contra a URSS. Depois desta se ter dissolvido pacificamente, em 1991, a OTAN não só permaneceu como se alargou e globalizou. Desprezando os protestos da Rússia, a aliança bélica alargou-se por 5 vezes, estendendo-se a mais 14 países. A Ucrânia começou a arder em 2014, com o derrube de um governo legítimo. A guerra de 2022 só foi um acaso para os distraídos, ou para quem está com má-fé. Perante o terror que o Estado de Israel exerce na região, e a crueldade do IDF em Gaza, a UE e os EUA apoiam incondicionalmente o regime brutal de Telavive. Kant ensinou-nos que só a força da razão edifica e constrói a paz. O Ocidente, que o deveria honrar, prefere a paz dos cemitérios, a razão da força desmesurada e bruta das armas.
Viriato Soromenho-Marques
Soromenho-Marques, Viriato, “A Herança Traída de Immanuel Kant”, Diário de Notícias, 20 de abril de 2024, página 11.