A GUERRA CIVIL AMERICANA

Em 14 de Junho de 1956, num discurso perante estudantes da Universidade de Harvard, John Fitzgerald Kennedy, então senador do Estado do Massachusetts, explicava uma das características fundamentais que tinham abençoado a génese dos EUA: “Os grandes políticos da nossa nação contavam-se também entre os seus primeiros grandes escritores e académicos, Os trabalhos de Jefferson, Madison, Hamilton, Franklin, Paine e John Adams – para nomear apenas alguns – influenciaram tanto a literatura como a geografia mundial”. Com efeito, o triunvirato do 2.º ao 4.º presidente (John Adams, Thomas Jefferson e James Madison), ilustra bem a verdade da tese de Kennedy. Muito mais tarde, no século XX, a Casa Branca foi habitada por um ex-reitor da Universidade de Princeton, Woodrow Wilson (1856-1924), que foi também um político que revolucionou o sistema internacional ao lançar a Sociedade das Nações, que é a mãe das Nações Unidas. Não só política e conhecimento estiveram lado a lado na tradição constitucional dos líderes dos EUA, como a prioridade entre essas duas vertentes está bastante clara nas palavras escolhidas pelo terceiro presidente para o seu obelisco tumular. Jefferson esqueceu todos os seus cargos políticos para deixar apenas três registos: a autoria da Declaração de Independência dos EUA e do Estatuto para a Liberdade Religiosa da Virginia, e o ter sido “pai da Universidade da Virginia”. O significado é claro: o saber científico e a sabedoria ética tinham o primado sobre a política em estado puro, devendo esta estar ao serviço de uma sociedade capaz de beneficiar dos frutos do conhecimento e da aplicação dos princípios éticos na procura do bem comum.

Agora que Donald Trump anunciou a sua recandidatura, sem nenhum rival no horizonte, seja nas fileiras do seu partido, seja entre os Democratas, importa meditar na tragédia que se abate todos os dias sobre os EUA e a comunidade internacional. Trump corresponde e ultrapassa a definição do demagogo dada por Karl Kraus (1874-1936): “O segrego do demagogo é o de se fazer passar por tão estúpido perante a sua plateia, para que esta se imagine ser tão esperta quanto ele”. A demagogia de Trump é um sintoma da longa degradação do sistema político norte-americano. Bush e Cheney já tinham sido uma etapa crítica desse processo de transformação da democracia em plutocracia, e do Congresso num lugar mal frequentado, onde os representantes do povo foram substituídos por mercenários, vassalos dos super-ricos. Mas Trump ultrapassa todos os limites. No seu desprezo por que não aparece nos seus comícios, na sua negação das verdades factuais mais elementares, destruindo sistematicamente as agências do governo federal encarregues dos estudos e relatórios prospectivos sobre ambiente e clima, na crueldade para com as gerações futuras a quem quer deixar um planeta infernal. Trump e as suas metástases, como Bolsonaro, recordam-nos que a guerra civil entre liberdade e escravatura não acabou em 1865. Ela continua. E desta vez, os esclavagistas estão a ganhar.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no “Diário de Notícias” de 22 de Junho de 2019, p. 34.

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