A GRANDEZA PERDIDA DOS EUA

Mesmo que a hipótese catastrófica de reeleição de Trump não aconteça, tanto o futuro democrático e federal dos EUA, como o seu lugar no sistema internacional continuam sob forte ameaça. Washington continua a ser a maior potência militar do planeta, mas está longe, quer de recuperar das feridas do clima de pré-guerra civil incentivado pela tóxica presidência-Trump, quer de retomar uma posição na cena global à altura do seu passado e das suas responsabilidades no futuro mundial. Os EUA perderam, manifestamente, a chave da grandeza política: os países só são grandes quando conseguem aliar o mais elevado grau de conhecimento objectivo da realidade à eficiência imparcial das instituições, articuladas pela decência moral dos actores políticos. Só essa trilogia, permite antecipar os desafios do futuro e as respectivas respostas, condição essencial para a liderança da comunidade internacional.

O português João de Andrade Corvo anteviu o Século XX Americano, na sua obra de 1870, Perigos! Cega pela sua soberba, a Europa mergulharia o mundo na segunda guerra dos 30 anos (1914-1945). Os EUA não só apagaram o fogo das guerras europeias, como tentaram uma solução institucional para prevenir novos conflitos. Foram dois presidentes dos EUA quem ofereceu as propostas mais sérias e sábias de solução: a organização da Sociedade das Nações, desenhada pelo Presidente Woodrow Wilson (ele perderia a saúde numa campanha sem sucesso para levar os EUA a integrar a “sua” organização), e mais tarde o ambicioso projecto das Nações Unidas, criado por F. D. Roosevelt (ele morreria escassos dias antes da sua formalização). Apesar de tudo, a ONU é ainda um oásis de civilização na barbárie reinante nas relações internacionais. O desafio da guerra-fria foi também enfrentado com sucesso, criando-se um consenso entre Washington e Moscovo sobre o absurdo de travar uma guerra termonuclear que a todos aniquilaria. Foi isso que permitiu o milagre-Gorbachev.

Os EUA falharam, contudo, o desafio da liderança contra o outro e mais relevante perigo ontológico: a crise global do ambiente e das alterações climáticas. Em 1965, o Presidente Johnson recebeu o primeiro Relatório sério sobre o tema. Jimmy Carter abraçaria algumas medidas durante o seu atribulado mandato. Tudo recuaria com Reagan. Por muito que Clinton e Gore, ou mais tarde Obama, tivessem mostrado preocupação com esse tema crucial, o facto é que o sistema político norte-americano há muito foi tomado como refém da plutocracia das grandes corporações, onde se incluem os combustíveis fósseis. A “república imperial”, como R. Aron chamava a Washington, transmutou-se na “democracia bilionária”, no contundente diagnóstico traçado por George R. Tyler em 2018. Ao trocar a disciplina da verdade objectiva pelo serviço venal dos mais brutais interesses instalados, a política norte-americana perdeu a sua fibra ética. Remover Trump na próxima terça-feira, será uma condição necessária, mas não suficiente, para suster o potencialmente explosivo declínio dos EUA.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 31 de Outubro 2020, p. 14.

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Paulo Rodrigues

A disputa eleitoral nos EUA está a ser travada entre os que pagam e os que são pagos.
São duas faces da mesma moeda.
Como alguém dizia há dias atrás, Trump teve uma coisa boa: dessacralizou a presidência dos EUA.
De facto, parece que o império americano está agora agarrado apenas ao poderio do dólar, mas a moeda (fiduciária, como todas as outras) só vale aquilo que as pessoas imaginam que vale.
E é a moeda de uma economia excessivamente desindustrializada, baseada na finança e no crédito, que funciona como fim em si mesmo.
É uma economia de privados, mas de marcas ocas (“hollow brands”), cuja natureza se tornou puramente comercial.
Mas, tirando as oligarquias (como Trump), que não são atingidas pelas falências, a maior parte dos empresários têm um limite ao endividamento, pois sabem que se falharem, perdem tudo.
Por isso, todos os estímulos que têm sido dados às economias desenvolvidas (a maior das quais, o quantitative easing) para retomar o ritmo anterior a 2008, falharam.
Quem precisa de crédito para investir, se não há nada para vender?
Se a ilusão do dólar acabar, o mundo será diferente.
Ficará então sob domínio chinês, do seu governo, do seu estado, do seu exército, da sua moeda e do seu banco central.
Mas, quem poderá dizer se será melhor ou pior que o império americano?