A GLOBALIZAÇÃO VEM ACERTAR CONTAS

A guerra acelerou um processo que já estava em marcha. A globalização neoliberal dos últimos 40 anos está em retirada. O que se vai seguir é dominado por uma densa incerteza. Apesar de Berlim tentar agradar a Washington sem perder o mercado chinês, a viabilidade de uma quadratura do círculo na UE é duvidosa. Se o conflito na Ucrânia entre a Rússia e a OTAN não empurrar a história humana para um longo período de cuidados intensivos, a Ásia assumirá não só a liderança económica global, mas um considerável grau de iniciativa geopolítica. A Rússia, que diversificou consideravelmente a sua economia desde as primeiras sanções ocidentais de 2014, encontrará na Índia e na China, entre outros países, mercados capazes de absorver em excesso as suas perdidas exportações de combustíveis fósseis para a UE. Parece germinar um novo sistema monetário global, onde o dólar perderá a hegemonia em favor de um modelo diversificado de moedas ao serviço de um comércio mundial mais segmentado. A deriva asiática da Rússia, com a dolorosa mutilação da sua alma europeia, a ocorrer, será uma espécie de metonímia de um ordenamento internacional, tensamente estruturado por uma nova bipolaridade com laivos de multipolaridade.

Nestas décadas de globalização neoliberal, em que a dinâmica do crescimento exponencial se apoderou do mundo, derrubando leis e barreiras protetoras, colocando o capital financeiro na cadeia de comando, transformando os Estados em servis leviatãs dos negócios e dos bilionários, que são hoje celebridades ocupando o lugar que no passado pertencia aos estadistas, a saúde ecológica do planeta piorou radicalmente. Ocorreu aquilo que nas ciências do sistema-Terra se designa como a Grande Aceleração. A economia global declarou uma guerra impiedosa contra a subtil filigrana do software planetário, e venceu em todas as frentes. A “economia que mata”, recordando a sábia expressão do Papa Francisco, desencadeou a sexta extinção da biodiversidade na história da Terra, alterou radicalmente a atmosfera e o clima, está a destruir a criosfera, alterou todos os grandes ciclos biogeoquímicos, do carbono ao enxofre, do azoto ao fósforo, dilatou e acidificou os oceanos, poluindo a hidrosfera com novos continentes de resíduos de plástico. O novo protecionismo pós-globalização continuará enraizado no pensamento mágico. Os países voltam costas às suas responsabilidades nos estragos que ignoraram na Grande aceleração. A dissonância cognitiva – palavras verdes e atos cinzentos – toma conta das políticas nacionais e internacional, onde o “combate” à crise global do ambiente e clima serve cada vez mais como camuflagem da insana competição pelos recursos naturais sobrantes. Contudo, essa manobra de fuga do protecionismo não surtirá efeito. A globalização neoliberal está a acabar, mas as nossas dívidas não ficarão por saldar. Sinais disso são as plumas dos grandes incêndios do Canadá, chegadas ao nosso país e à Europa. Ou a alga japonesa Rugulopteryx Okamurae, uma agressiva espécie invasora, disruptiva dos ecossistemas marinhos, que arruína as pescas e o turismo, atacando o barlavento algarvio depois de ter ocupado largos territórios em França, Espanha e Açores. No mundo real todos os benefícios têm um custo. A desmedida farra da globalização vem agora cobrar-nos o seu crédito. Sem descontos e com juros crescentes.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias, edição de 1 de julho de 2023, página 11.

Subscribe
Notify of
guest
0 Comments
Inline Feedbacks
View all comments