O que é que pode existir de comum entre um Presidente norte-americano que num discurso oficial do 4 de Julho afirma que em 1775 as milícias do general Washington conquistaram os “aeroportos” às tropas coloniais inglesas, e um ex-responsável da NASA que no vulcão dos Capelinhos busca um lugar de treino para uma futura missão tripulada a Marte? Ou ainda, qual a semelhança entre os economistas portugueses que identificaram a baixa natalidade como o maior problema nacional, e os investigadores de gerontologia anunciando, com orgulho, estarmos próximos do prolongamento da esperança de vida para os 120 anos? Todos estes casos partilham os valores da mesma cultura que hoje é verdadeiramente global: a cultura da fuga do mundo.
A actual fuga ao mundo já não é protagonizada por eremitas que saem das cidades para viverem numa floresta, ou no alto de um penhasco, fazendo jejum e voto de silêncio. A nova fuga ao mundo, de que o eclipse da racionalidade política é o facto decisivo, ocorre dentro do mundo como realidade física, contudo, destruindo voluntariamente, dentro da própria consciência individual, a ideia de mundo como habitação comum e frágil, de que todos os humanos dependem e todos devem cuidar, apesar das suas diferenças. Hannah Arendt pensou o início desse fenómeno, que hoje atinge uma expressão patológica, provavelmente sem remissão. O modo como hoje, em espaços públicos como o metro todos nos deixamos transportar para as nossas microesferas privadas através dos telemóveis, usados como um portal para fora do espaço comum, é uma caricatura gráfica desta nova modalidade de negar o mundo, através da sua pulverização em mónadas imaginárias.
Se não tivéssemos desistido da ideia de que todas as nossas vidas devem submeter-se aos deveres do mundo comum, tal como todos os passageiros de um avião se devem submeter, independentemente dos motivos da sua viagem, às normas de segurança da aeronave, estaríamos hoje – Estados, empresas, cidadãos – mobilizados pela tarefa absolutamente prioritária de combater os danos letais no ambiente e clima que continuamos a infligir à segurança da nossa única habitação cósmica: este Planeta deslumbrante em que o único erro de casting parece termos sido nós. Preocupamo-nos retoricamente com isso, mas em primeiro lugar segue a agenda das nossas vidinhas. O eleitorado nos EUA não fez por menos: escolheu um megalómano alucinado para garantir que a agonia planetária não interfira nos negócios da plutocracia reinante. Os sonhadores de Marte, os preocupados com a demografia portuguesa, os vendedores de velhices infinitas seguem felizes nas suas carreiras. Se não tivessem riscado o mundo real do seu horizonte perceberiam que nada disso será possível ou relevante num futuro que se mede em escassas décadas. Quando a máscara da ilusão cair, o mundo que é de todos e que não tem santuários, regressará na enxurrada de um ecossistema em caótica turbulência, varrendo instituições e substituindo a lei e a ordem pela grosseira selecção darwinista. Realista e brutal.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de dia 13 de Julho de 2019, página 39.