A FRÁGIL VERDADE ENTRE A “PROPAGANDA” E AS “REDES”

SE ALGUÉM tivesse dúvidas sobre a patologia cognitiva e moral que afecta (também) as sociedades democráticas contemporâneas, o simples visionar das reportagens sobre as recentes eleições nos EUA rapidamente nos abriria a porta para o deserto cultural e moral onde cada vez mais estamos a mergulhar. Os adeptos de Trump, em diferentes Estados, repetiam com uma convicção inabalável o guião preparado antes das eleições sobre a separação entre “votos legítimos e votos ilegítimos”. Essa bizarra diferença tem como claro objectivo desvalorizar os votos por correspondência, que traduzem os cuidados dos eleitores anti-Trump face à pandemia, colocando a ênfase nos votos presenciais dos seguidores do ainda presidente dos EUA. Esse mantra repetido até à exaustão, constituiria o primeiro passo para, depois de muito ruído e erosão, tentar arrebatar na secretaria, através do mais reaccionário Supremo Tribunal da história dos EUA, a vitória obtida por Biden nas urnas.

O que me choca não é esse plano, cuja natureza criminosa não é coisa rara na esfera política. O que nos deveria fazer pensar seriamente é essa espécie de nebulosa “servidão voluntária”- para usar uma expressão com quase meio milénio de Étienne de la Boétie – dentro da qual tanta gente se deixa manipular activamente pela mentira organizada que lhes é servida, perdendo qualquer capacidade de reflexão crítica, cortando os laços não apenas com a “verdade objectiva”, mas também com o resto do mundo. Muitos dos entrevistados orgulhavam-se de não lerem jornais, nem verem televisão. Percebe-se que se alimentam exclusivamente das famosas “redes sociais”.

A PROPAGANDA é um livro publicado nos EUA, em 1928, da autoria de Edward L. Bernays (1891-1995), que é fundamental para perceber, nas suas origens, como funciona a formação da opinião pública na sociedade de massas em que habitamos. Bernays, que nunca perdia uma ocasião para mencionar o seu parentesco com Freud, escrevia logo no início do seu ensaio: “A manipulação consciente e inteligente dos hábitos organizados e das opiniões das massas” leva a que se possa considerar aquelas pessoas que a exercem “como um governo invisível que constitui o verdadeiro poder governante” dos diferentes países. Bernays assumia-se como um verdadeiro filósofo da “propaganda” – na acepção que lhe deu o Papa Urbano VIII em 1627 ao reformar o ensino missionário – que não se confunde com mera publicidade. A sua concepção visa a gestão benevolente e apolínea desse imenso poder. Focado, sobretudo no cenário dos EUA, Bernays procura demonstrar a utilidade prática da propaganda, seja na política, na economia, ou na cultura em geral. Ela serviria para estabelecer pontes e mecanismos de cooperação, através de uma linguagem, valores e gostos comuns, a criar em sociedades muito numerosas, fortemente pluralistas e até mesmo segmentadas em facções potencialmente hostis.

O que separa a propaganda de 1928, das redes sociais de 2020, é uma abissal diferença. A imprensa ou a rádio competiam no mesmo espaço geral e comum (esse carácter “generalista” permanecia como referência, mesmo no caso de órgãos especializados em actividades particulares, do desporto à música clássica), com trabalhadores profissionalizados, obedecendo a regras deontológicas comuns, submetidos a instâncias públicas e privadas de regulação, com a sombra de eventuais sanções em caso de transgressão dos limites legais vigentes. Esta disciplina – que apesar de tudo não conseguiu evitar a péssima qualidade média das televisões contemporâneas – é em tudo o contrário daquilo que ocorre no imenso tribalismo das redes sociais. Estas não pretendem disputar a esfera pública universal, mas sim criar, através da canibalização e fragmentação dessa esfera comum, o seu espaço próprio, independente e blindado, sem qualquer regulação e regra que não seja a da tribal sujeição dos seus membros aos imperativos de crenças e líderes totalmente fora de qualquer método de contraditório, ou de qualquer escrutínio crítico.

NA “PROPAGANDA” de Bernays ainda existem cidadãos. Nas Redes de Trump ou dos Terraplanistas, subsistem apenas aqueles que vestem apaixonadamente as amarras da obediência, típicas de um crente, ou melhor, de um fã. Se a tudo isto juntarmos o matraquear repetitivo da Inteligência Artificial que numa discursividade sem pensamento se limita a alimentar as Redes com informação, onde o valor de verdade é substituído pelo valor da redundância emocional, confirmativa da crença tribal partilhada, percebemos, dolorosamente, como nas sociedades contemporâneas o diálogo pluralista está a ser substituído pelo choque de mónadas hostis, sem capacidade de escuta e muito menos de compromisso.

A Propaganda “clássica” não deixa de ser uma forma de manipulação. Uma estratégica para influenciar e dirigir, as mentes e os actos. Contudo, ao contrário das Redes, a Propaganda (pelo menos, em sociedades democráticas, não estou a pensar no inferno concentracionário do nazismo ou do estalinismo), ainda tem algumas janelas para o mundo, para a realidade objectiva. É isso que vemos hoje, quando, apesar de todas as travagens e maquilhagens efectuadas pelos interesses instalados, os grandes problemas do ambiente e do clima já fazem parte da agenda noticiosa de primeira linha. Em contrapartida, o negacionismo alucinado da verdade factual, prospera nas Redes, e entra no mundo da grande política através de criaturas como Trump ou Bolsonaro. O seu desaparecimento da cena política não significa, contudo, que a lógica de loucura colectiva e de guerra civil, transportada pelo horror das Redes à verdade objectiva, não continue a ser um obstáculo maior no caminho da cooperação global. O mesmo é dizer, na possibilidade da sobrevivência de uma humanidade civilizada.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 2 de Dezembro de 20200, página 29.

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