Na abertura da COP27, António Guterres pronunciou uma frase que terá feito pestanejar alguns chefes de Estado na estância turística de Sharm el Scheikh: “estamos numa autoestrada rumo ao inferno, com o pé no acelerador”. Não sei se o SG da ONU se terá inspirado, ou não, numa frase impressa há 60 anos na obra seminal de Rachel Carson, Primavera Silenciosa, que abriu uma nova idade na consciência da crise ecológica e ambiental. Também ela, bióloga com paixão por literatura, glosou um famoso poeta norte-americano quando escreveu: “Encontramo-nos agora numa encruzilhada, onde duas estradas divergem. Mas ao contrário das estradas do conhecido poema de Robert Frost [The Road not Taken, 1915] elas não são igualmente boas. A estrada por onde há muito temos viajado é enganadoramente fácil, uma suave autoestrada na qual progredimos com grande velocidade, mas tendo no seu termo o desastre. A outra bifurcação da estrada, aquela «menos percorrida», oferece a nossa última, a nossa única possibilidade de chegarmos à destinação que assegura a preservação da nossa Terra.”
Em 1962, quando Rachel Carson publicou o seu livro, a população mundial tinha atingido pouco mais de 3 mil milhões de almas. A concentração de dióxido de carbono na atmosfera tinha atingido 319 ppm (partes por milhão). Nessa altura, as alterações climáticas eram um tema limitado apenas àquela pequena elite de cientistas mais preocupada com o futuro da humanidade do que com o avanço da sua carreira. Neste mês de novembro de 2022 galgámos a barreira dos 8 mil milhões de pessoas e atingimos em maio um pico de 421 ppm de CO2 (reconstruindo a concentração de há 3 milhões de anos). Uma década depois de Rachel Carson, Donella Meadows e um grupo de colegas do MIT publicaram o notável relatório Os Limites do Crescimento, que hoje só podemos afirmar ter pecado por defeito (as alterações climáticas não eram ainda consideradas). Essa obra, tão corajosa como rigorosa, foi acolhida com uma enxurrada de insultos dos “otimistas” da esquerda e direita. Por tudo isso, a pergunta correta que deveríamos colocar hoje é a seguinte: se não aceitámos os alertas de 1962 e 1972 – quando poderíamos, com alta probabilidade, ter conseguido uma mudança de modelo de civilização sem ruturas e um razoável grau de controlo – qual o sentido de esperar que em 2022 seja possível dar esse passo, que implicará dolorosas mudanças nos estilos de vida, em nome de um mundo habitável para os mais jovens?
Só poderíamos seguir a estrada “menos percorrida”, aceitando viver dentro dos limites biofísicos da Terra, se tivéssemos a bravura de derrubar o bezerro de ouro do crescimento económico exponencial e a mitologia do otimismo tecnológico. Infelizmente, os dirigentes que falaram depois de Guterres continuaram a acender velas à quimera do crescimento infinito, escoltado por uma séria de slogans vazios de conteúdo, como “economia circular” ou “crescimento verde”. As próximas etapas da autoestrada do inferno já estão identificadas: primeiro, esburacar a litosfera e biosfera em busca de metais raros para a “transição energética”; depois, tentar travar o colapso ambiental com o aventureirismo febril da geoengenharia. Para evitar esse destino, teríamos primeiro de nos cobrir de vergonha: pensámos a nossa identidade como livres filhos de Deus e, na verdade, comportamo-nos de acordo com os manuais de virologia: aniquilamos sem remorso a Terra, o corpo hospedeiro que nos deu e garante a vida.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 12 de novembro de 2022, p. 9.