A CRISE AMBIENTAL E A ESQUECIDA LIÇÃO DA GUERRA FRIA

A nossa capacidade de adaptação é um mecanismo de sobrevivência imprescindível, mas só dentro de balizas estreitas. Se nos esquecermos de nos beliscarmos, criticamente, com regularidade, a adaptação transformar-se-á num monstruoso processo de destruição das últimas esperanças na capacidade moral da condição humana. Neste início do ano de 2021 é conveniente envolver num olhar amplo e profundo o mundo à nossa volta, e o horizonte temporal que se estende à nossa frente. O mais breve exame que se fizer termina num diagnóstico sombrio. A nossa espécie caminha aceleradamente para o colapso ambiental e climático, e nos últimos quarenta anos as instituições que a poderiam salvar têm sido metodicamente enfraquecidas. A pandemia é apenas um cisne negro, vista pelos óculos da nossa ignorância sobre as consequências da extinção maciça da biodiversidade.

Como poderíamos evitar a rota de fuga para a frente, que se instalou, transformando a atmosfera, a biosfera, a hidrosfera, o ecossistema planetário em geral, “bens comuns globais”, que em vez de serem protegidos estão a ser delapidados pela concorrência desenfreada dos interesses financeiros e económicos globais, relativamente aos quais os Estados actuam como agentes e facilitadores? Hans Morgenthau, um dos expoentes do realismo nas relações internacionais, seria o primeiro a afirmar que esse novo regime internacional – capaz de salvaguardar e promover a habitabilidade da Terra – seria não só viável, como absolutamente necessário, desde que os participantes no mesmo fossem capazes de compreender que ele satisfaria mais interesses, e interesses mais prioritários, de cada um e de todos os parceiros, do que aqueles que pela sua ausência pudessem ser eventualmente satisfeitos (Hans J. Morgenthau, Politics Among Nations. The Struggle for Power and Peace, New York, Alfred A. Knopf, [1ª edição: 1948] 1965 [3.ª edição], p. 9). Visto sob este prisma, fica muito claro que o regime actual de pandemónio nas relações internacionais é o menos realista possível, porque está completamente desfasado do que seria necessário realizar para garantir o valor matricial da sobrevivência da humanidade em condições de dignidade.

Do “soberanismo” de Vestefália à MAD

O padrão clássico do moderno sistema internacional — desde o surgimento em 1648, com o Tratado de Vestefália, de uma ordem europeia baseada no “equilíbrio do poder” entre Estados, orientada por uma lógica secularizada de interesses — é definido, na linguagem da teoria dos jogos, pelo modelo zero-sum. No interior desse padrão, os conflitos entre Estados são orientados por uma clara perspectiva de vitória. Os ganhos de um contendor são directamente proporcionais às perdas do seu adversário. Este modelo tem dominado as relações internacionais ao longo dos últimos quatro séculos, inspirando as cíclicas corridas aos armamentos, o deflagrar de guerras de diferentes intensidades, a produção e destruição de alianças regionais, a sucessão de processos de inflação e deflação de potências regionais e continentais.

Só o aparecimento na cena histórica do armamento nuclear estratégico veio alterar as regras do jogo. Com efeito, a perspectiva de uma “destruição mútua assegurada” (MAD), particularmente visível a partir da crise dos mísseis de Cuba (Outubro de 1962), levou ao desenvolvimento — no âmbito das diversas escolas geradas em torno da temática da dissuasão pelo terror — da definição de zonas de ‘interesse comum’, a principal das quais consistia em evitar a eclosão de uma guerra central generalizada que conduziria à aniquilação dos blocos inimigos (estudei esse tema num dos meus primeiros livro: Europa. O Risco do Futuro, 1985: 77-88). Dessa forma, mesmo nos piores momentos da guerra fria o diálogo entre Washington e Moscovo nunca foi interrompido. A ‘cooperação entre inimigos’ evitou a guerra nuclear até ao desmoronamento final da geografia política herdada de Yalta.

Temos, assim, em presença dois modelos de conflito. O primeiro convida a uma competição sem limites definidos, encorajando a exploração de egoísmos particularistas por parte dos (Estados) contendores, desde que apoiados na força como principal suporte da esperança na vitória. O segundo – nascido na dissuasão pelo terror atómico da guerra-fria – circunscreve o conflito à draconiana disciplina da eventualidade de uma tragédia anunciada, caso a oposição entre os adversários escape ao controlo de uma autocontenção deliberada e obrigatória. Trata-se, neste último modelo, e pela primeira vez na história mundial, do eclipse absoluto da possibilidade de uma vitória pelas armas. Ou, dito de outro modo, o terror nuclear introduziu na história dos conflitos internacionais a novel categoria da cooperação compulsória entre inimigos como alternativa à derrota e total destruição de ambos.

Por uma “dissuasão” ambiental e climática

Entre 1985 e 1991 a URSS preferiu arriscar a implosão da sua confi­guração política à destruição do planeta numa guerra contra os EUA, que incluiria, evidente­mente, a eliminação física da população e dos dirigentes do impé­rio comandado a partir de Moscovo. Mais uma vez, a sobrevivên­cia prevaleceu sobre o impulso para o domínio a todo o custo. A dissuasão pelo terror funcionou a favor da vida, dando uma nova oportunidade ao sistema internacional. Hoje, as amea­ças que pai­ram sobre o ambiente e o clima mundiais têm no uso de um património comum, onde se destaca a atmosfera como palco central das alterações climáticas, o centro nevrálgico do novo problema da nossa sobrevivência colectiva, e da sua eventual solução. A atmosfera planetária é hoje um tema político de segurança nacional e mundial. Nenhum país pode decretar uma soberania exclusiva sobre a “sua” atmosfera, sem, com isso, incorrer num acto de hostilidade para com o resto dos parceiros da comunidade internacional. Não temos meios para expandir fisicamente a atmosfera, mas temos meios para uma sua gestão mais sustentável. Mas para isso, o requisito fun­damental é a assinatura e implementação de um verdadeiro regime internacional para a pro­tecção do clima (no quadro de um Pacto Ecológico Global que integre todas as dimensões nevrálgicas da crise global do ambiente), de que o Acordo de Paris (2015) não passa de uma pálida e ineficaz aproximação. Um regime que implicará a com­preensão de que a defesa do ambiente e do clima planetários é o interesse mais forte e prioritário de todos e de cada um dos par­ceiros da comunidade internacional, pois viabiliza o valor primário da sobrevivência.

O negacionismo climático e ambiental é hoje um inequívoco acto de guerra contra toda a comunidade internacional. Que o actual sistema internacional tenha esquecido a lição da dissuasão nuclear, que salvou a humanidade da 3.ª guerra mundial no último quartel do século XX, é uma realidade inquietante. Talvez um sinal de que as elites mundiais estão infectadas não apenas pelo vírus da indiferença moral, mas também pela erosão da elementar capacidade de pensar de acordo com as categorias da causalidade e da analogia.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, edição de 13 de Janeiro de 2021, pp. 30-31

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Paulo Rodrigues

O livro do Apocalipse da Biblia chama-se Revelations em Inglês.
Muitos têm visto nele a figura da besta associada a Trump (os seguidores usariam o sinal da besta na testa, interpretado como o famoso boné MAGA).
Trump foi corrido, porque grande parte da elite americana não o quer.
Mas nem toda: a finança queria manter Trump.
Fico na dúvida de quantos dos 74 milhões de votos em Trump não foram “comprados” por wall street.
Wall street que agora considera mudar-se para a Flórida, o paraíso trumpofónico.