A CONSTRUÇÃO DA GRANDE ACELERAÇÃO

OS HISTORIADORES NA ÉPOCA DO ANTROPOCENO

John R. McNeill (1954) e Jean-Baptiste Fressoz (1977)
John R. McNeill (1954) e Jean-Baptiste Fressoz (1977)

Ao longo de muitas das nossas crónicas, temos tentado demonstrar como a nova “ciência do Sistema-Terra” (Earth System science) constitui, na verdade, uma aliança pluridisciplinar de académicos e investigadores unidos pelo cuidado com o estado atual e futuro da nossa morada planetária. Muito embora abundem os físicos, os químicos, os biólogos, também existem investigadores das ciências sociais, nomeadamente, da arqueologia, da história, da economia, do direito, da filosofia, entre outras disciplinas. Nesta crónica iremos fazer um breve apontamento sobre dois importantes historiadores.

Um contributo particularmente relevante foi dado pelo historiador da Universidade de Georgetown, J. R, McNeill, um dos pioneiros da “história ambiental”. Numa obra publicada em 2000, reforçada depois em 2016, esse autor mostrou de forma exuberantemente documentada que foi a partir do final da II Guerra Mundial que a ação antrópica no planeta ampliou a aprofundou a sua característica entrópica e destrutiva sobre os diferentes componentes do Sistema-Terra (McNeill, 2000 e 2016). Não tardou que o seu trabalho e o seu conceito de Grande Aceleração fossem integrados numa teoria mais vasta do Antropoceno. Em 2007, a Grande Aceleração foi integrada como a segunda de três etapas do Antropoceno. Mais recentemente, autores como Will Steffen inclinam-se para fazer coincidir o Antropoceno com essa aceleração ocorrida a partir de 1945. Deve salientar-se, contudo, que dentro da proposta do Antropoceno mantém-se vivo um debate que visa identificar quais os principais protagonistas desta nova época geológica. Na verdade, o que se pretende evitar é a ideia de que toda a humanidade é igualmente responsável pelos atos, decisões e instituições que nos conduziram à dramática situação presente. Na verdade, toda a humanidade partilha as consequências e os sofrimentos da Grande Aceleração, mas existe uma clara diferenciação e hierarquia de responsabilidades. Por exemplo: entre 1950 e 2010, embora o crescimento populacional se tivesse concentrado nos países em vias de desenvolvimentos e BRICS (80% da população mundial), em contrapartida, 74% do PIB mundial foi gerado no bloco de países mais industrializados da OCDE (ver crónica, JL de 08 02 2023).

Outro contributo importante tem sido oferecido pelo trabalho de investigadores franceses integrados no CNRS, com destaque para Jean-Baptiste Fressoz. Trabalhando no horizonte histórico mais amplo da Revolução Industrial, e recuando até mais no tempo, estes autores têm produzido uma visão policromática e não-linear do complexo processo do Antropoceno. Se consideramos que em dois séculos, de 1800 a 2000, a população mundial aumentou 7 vezes, o consumo de energia, 50 vezes e o capital, 134 vezes, faz todo o sentido considerar como válidos, pelo menos para discussão, os conceitos de Termoceno ou de Capitaloceno. Se não forem alternativas, ajudarão, pelo menos, a refinar a nossa compreensão do Antropoceno. Do mesmo modo, olhando para o diferente papel dos países no sistema internacional, verificamos que até 1980, 50% de todas as emissões de gases de efeito de estufa tinham sido produzidas por apenas dois países, a Grã-Bretanha e os EUA. Não deixará de ser útil, por esse motivo, refletir sobre a designação de “Angloceno”, dada a enorme responsabilidade histórica acumulada por esses países ocidentais de percurso imperial.

Numa perspetiva comunicacional e de história das ideias, Fressoz e colegas resgatam do esquecimento a existência de preocupações antigas com o impacto ambiental da ação humana sobre o ambiente. Sobretudo, desde o final do século XVIII crescia uma preocupação com as consequências climáticas da desflorestação, que aliás também teve claros ecos no grande sábio luso-brasileiro José Bonifácio de Andrada e Silva. Em 1821, Charles Fourier escreveu mesmo um ensaio intitulado “A Degradação material do Planeta”, onde denunciava como causa desse perigo, a agressividade do novo capitalismo industrial (Ver crónica, JL 22 03 2023). A expansão e consolidação do Antropoceno também só foi possível pela afirmação de discursos e estratégias propagandísticas que desinibiram os indivíduos e as suas diferentes organizações, anulando as resistências aos perigos através da criação de uma acrítica fé secular nas recompensas prodigiosas, contidas nas promessas do “progresso” tecnológico e industrial.

Sob uma ótica política, é interessante também observar que não existe, como pode ser demonstrado estudando os dados históricos com detalhe, nenhuma lógica determinista na trajetória dos modelos energético e tecnológico ao longo do tempo. O primado do carvão, até 1910, e posterior expansão do petróleo, não se prendem com uma eventual vantagem intrínseca do último sobre o primeiro. Para Fressoz, os EUA apostaram no petróleo, apesar de ser mais caro do que o carvão, por terem aprendido com a experiência inglesa, evitando com isso o grande peso político dos poderosos sindicatos britânicos ligados à mineração do carvão, cujas greves eram capazes de paralisar o país inteiro. Também a substituição da geração descentralizada de eletricidade, por via eólica, nos EUA do final do século XIX, ou o aquecimento das casas por via solar térmica, que dominou na Califórnia e na Florida até 1950, só foi possível pelo apoio das políticas públicas às grandes empresas geradores de eletricidade a partir de combustíveis fósseis. Sem a capacidade de manipulação do Estado, demonstrada pelas elites do poder económico e financeiro, a nível nacional e sobretudo global, o curso da história teria sido, provavelmente, outro (Fressoz, 2016 e 2020).

Os historiadores, como cientistas da história, ajudam a demonstrar como a atual situação de corrida imparável para o abismo a que chegámos resultou de sucessivas decisões – por parte das elites do poder, do dinheiro e da tecnociência – em que o valor da liberdade e o cuidado com o futuro foram trocados por um prato de lentilhas.

Referências

  • McNeill, J. R., Something New under the Sun: An Environmental History of the Twentieth-Century World. New York: W.W. Norton, 2000.
  • McNeill, J. R. & Peter Engelke, The Great Acceleration: An Environmental History of the Anthropocene since 1945. An Environmental History of the Anthropocene since 1945, Cambridge, MA, Harvard University Press, 2016.
  • Fressoz, Jean-Baptiste, Bonneuil, Christophe : L’événement Anthropocène. La Terre, l’his­toire et nous, Paris, Seuil, 2013.
  • Fressoz, Jean-Baptiste & Locher, Fabien, Les Révoltes du ciel. Une histoire du changement climatique XVe-XXe siècle, Seuil, 2020.

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Jornal de Letras, na edição de 3 a 16 de maio de 2023, p. 30.

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