Se a qualidade de um discurso político puder contar como um indicador da saúde de um regime, então durante os 20 minutos da alocução do Presidente da República nas comemorações do 47.º aniversário do 25 de Abril, Portugal terá sido a mais robusta democracia europeia. O discurso presidencial, sem nunca perder o registo de aparente transparência, é denso, polissémico, combina teses, hipóteses interpretativas, sugestões metodológicas, que irão permanecer para além do contexto que o viu nascer.
Logo de entrada, bruscamente, Marcelo relacionou a génese do actual regime com o início da guerra colonial, e através disso com o mais de meio milénio de expansão imperial portuguesa. Impossível não evocar uma outra voz, inspirada e inspiradora, a de Antero de Quental na sua Conferência do Casino sobre As causas da Decadência dos Povos Peninsulares (27 de Maio de 1871). Nessa altura, o país atravessava uma longa pausa na sua história imperial, inaugurada pela secessão do Brasil. Como Almeida Garrett escreveria em Portugal na Balança da Europa (1830), obra editada no seu exílio inglês: “Portugal foi rico e poderoso, a má administração o deixou mais pobre e mais fraco do que nenhuma outra potência da Europa (…) Portugal perdeu tudo o que lhe dava e garantia sua efémera independência”. Para Antero, todavia, destoando da maioria da nossa elite intelectual, “as conquistas longínquas”, como ele designava a expansão ultramarina, longe de serem a solução, faziam parte do problema português. Para ele, o império tinha sido, ao lado da Inquisição e do centralismo, uma das causas da nossa decadência. A expansão semeara desertos na Beira e no Alentejo, fazendo perder a massa crítica necessária para o progresso, que Antero visionava à luz da Europa reformada, alfabetizada e laboriosa. Os conselhos de Antero não foram escutados. Gente de génio, como João Andrade Corvo, ou a plêiade de inteligências concentrada na Sociedade de Geografia, impuseram uma direcção oposta: o novo império africano desenhado em Berlim (1885) passou a ser sinónimo da sobrevivência de Portugal. Das campanhas de Mouzinho, ao envolvimento dos republicanos “guerristas” na Flandres, para garantirem as colónias, até à intransigência absoluta de Salazar, o consenso estratégico luso foi imperial. Salazar, sobre isso, pensou exactamente o mesmo que Afonso Costa, por muito que isso doa a alguns corações sensíveis.
O discurso de Marcelo dirigiu-se ao estado pós-imperial do país que hoje somos, depois do caminho não aconselhado por Antero ter chegado, dolorosamente, ao fim. Com rigor, Marcelo pintou um impressivo quadro perspectivista dos últimos 60 anos. No imenso fresco de Portugal e dos territórios que dele se emanciparam, Marcelo referiu todos os pontos de vista, todos os interesses que estiveram em confronto. Juntou-os numa óptica de inclusão e respeito. Como estadista, sem dúvida, em nome da mobilização para as tarefas imensas que merecer o futuro nos reserva. Como poderia ser de outro modo, se Portugal quiser persistir num mundo de crises existenciais titânicas? Mas o discurso pertence também a um cidadão que sabe ser a história uma poderosa torrente vital que arrasta todos os seus actores e vítimas. Para os historiadores, em particular, o discurso recomenda a humildade necessária para não confundir as lições da história com os veredictos de um tribunal imaginário, para o qual nem os deuses nem os homens seriam juízes competentes.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias em 1 de maio de 2021