Depois do duplo desaire da CSU, CDU e SPD nas eleições estaduais da Baviera e de Hesse, a “grande coligação” em Berlim transformou-se num eufemismo que vale 40% das intenções de voto do eleitorado germânico a nível federal (dados Pollytix-Wahltrend). O que aconteceu aos partidos históricos da RFA não pode ser explicado pela narrativa preguiçosa da ascensão da extrema-direita, representada pelos neonazis, ainda engravatados, da AfD. Na política existem tendências, mas não determinismos semelhantes à lei da gravidade. Se houve um claro vitorioso nacional, esse foi o partido dos Verdes (Die Grünen), que colhe hoje a preferência de 20% dos alemães, tornando-se num claro potencial segundo partido, bem à frente dos 17% da AfD e dos humilhantes 14% do SPD. No estado do Hesse, fugiram mais votos da CDU para os Verdes do que para a AfD. Isto significa que o governo e a chanceler estão a merecer repúdio por parte de eleitores que são cosmopolitas, que aceitam a hospitalidade aos emigrantes e refugiados, que querem a unidade europeia num quadro de defesa do ambiente e desenvolvimento sustentável. A ideia de que Merkel é a última defesa contra os bárbaros que ameaçam devastar a UE, pode colher junto de alguns comentadores portugueses, mas não corresponde ao estado da opinião liberal e democrática dominante na Alemanha. Mais grave ainda, Merkel ficará nos livros da história que ainda está a ser feita como a líder que recusou todas as escolhas que poderiam engrandecer e fortalecer a Europa, que deitou a perder todas as oportunidades de corrigir a perigosa trajectória que ainda nos arrasta em velocidade crescente. Por outro lado, a sua ideia peregrina de renunciar a ser candidata a dirigente da CDU, no próximo congresso de Dezembro, mantendo-se, todavia, à frente do governo até às eleições de 2021, indica alguém que perdeu o contacto com a realidade. Como a própria Merkel sempre afirmou, a concentração na mesma pessoa da chefia do governo e da liderança do partido-chave do governo deve ser a regra. Não sei se haverá eleições antecipadas na Alemanha, mas estou seguro de que o crepúsculo da chanceler, que a própria pretenderia estender por 3 anos, talvez nem dure 3 meses.
Se os grandes líderes, aqueles que dão o rosto a reformas que permitem melhorar o mundo, se destacam pela capacidade de se colocarem no lugar dos outros, a chanceler Merkel, pelo contrário, representa a teimosa persistência de governar dentro da sua pequena visão do mundo. Numa conferência recente na Universidade de Goethe, o filósofo Jürgen Habermas criticava precisamente o governo de Merkel por este olhar para a crise europeia apenas na perspectiva da sua agenda egoísta: “Eu fico espantado com o desplante (Chutzpah) do governo alemão que acredita poder ganhar parceiros naquelas políticas que nos interessam – refugiados, defesa, comércio internacional – ao mesmo tempo que obstrui completamente a questão de completar politicamente a UEM”. Desde as eleições europeias de 2014 que a iniciativa política na Europa passou para o voluntarismo populista. Merkel tem recusado todas as possibilidades, inclusive as modestas propostas do presidente Macron, para fazer sair o euro do colete-de-forças do tratado orçamental, esse insensato exercício de sadomasoquismo financeiro imposto aos povos e Estados como uma fatalidade natural. A crise europeia talvez já tenha passado o ponto de não-retorno, mas a saída de cena de Merkel só deverá ser encarada como favorável à esperança.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado originalmente no Diário de Notícias de 4 de Novembro de 2018