Um século depois do nascimento de Eduardo Lourenço (doravante, EL) é impossível não sentir uma dor de alma pela falta que nos faz a sua capacidade de decifrar enigmas. Neste momento surpreendente, em que um vento de loucura percorre o mundo – podendo devastá-lo muito mais depressa do que até os mais pessimistas o poderiam prognosticar –, reler o que esse grande pensador escreveu sobre Portugal e o mundo ajuda à serenidade, embora amarga, que a lucidez, sempre permite. No Labirinto da Saudade (1978), EL revelou-se como o mais brilhante crítico do “excepcionalismo português”. Com rigor, por vezes anatómico, EL analisa os mitos identitários nacionais, mostrando os parentescos existentes entre aparentes inimigos radicais, como o eram o nacionalismo conservador e católico, e o progressismo neorrealista de laivos marxistas. A mitologia lusa caracteriza-se por uma tendência para narrativas irrealistas, que lhe escondem aos próprios olhos, a íntima pulsão de fuga, a recusa de um olhar no espelho, de um ajuste de contas com as suas potencialidades e limites. Era isso que levava EL a duvidar de que fôssemos capazes de “construir um telhado duradouro para a nossa própria casa”. Depois de quinhentos anos de oscilante e descontínuo nomadismo imperial, a nossa fuga coletiva foi para a Europa, sempre em busca do reconhecimento e amparo alheios, numa inquietante falta de inteligência estratégica, que marca todo o nosso bizarro e esfusiante processo de integração europeia. Perdemos o destino imperial (Do Colonialismo como nosso Impensado, 2014), e lançámo-nos, incondicionalmente, de olhos fechados, no severo regaço europeu. Foi no domínio da hermenêutica das efabulações europeias que EL se excedeu. A Europa Desencantada (1994 e 2001) permanece como um ensaio de notável clarividência, onde é o Velho Continente inteiro, na diversidade dos seus povos e imaginários nacionais conflituais, que se senta no sofá para exame.
O que surpreendemos hoje nas revelações da CPI sobre a TAP não é razão apenas para “vergonha alheia”. Aquilo que torna esse “espetáculo” insuportável para alguns, ou compulsivamente irrecusável para outros, é o que essa investigação evidencia não só sobre o frágil telhado da “casa” portuguesa, mas também sobre as débeis fundações desta III República, com muitas maleitas mesmo antes de atingir 50 anos. As figuras que na AR testemunham e se contraditam não podem ser vistas como bodes expiatórios, pois partilham dessa nossa incapacidade como comunidade política, denunciada por EL na senda de Antero, de nos olharmos de frente. O atrevimento, disfarçado de coragem, a precipitação, confundida por determinação, a verbosidade fácil, proposta como competência, são características de uma fuga em relação à verdade dos nossos limites. O PM, no seu inabalável e resiliente otimismo, representa essa evasão para diante, perante as complicações que nos cercam. Os nossos horizontes de fuga, a Europa e os EUA, apresentam também claros sintomas de afasia perante a complexidade do real. Na aparente unidade europeia, sob a batuta de Washington e a restaurada russofobia, antecipam-se claras linhas de fratura, tendo por centro uma Alemanha que, ensurdecida pelos tambores de guerra, perdeu peso económico, rumo e identidade. Mesmo que seja demasiado tarde para deter as dinâmicas erosivas do vento de insanidade que varre o mundo, não fugir à verdade do que somos será sempre indispensável para reerguer o telhado da nossa casa.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 27 de maio, página 12.