A BORDO DO TITANIC 2.0

No dia 14 de Abril de 1912, antes da colisão com o iceberg que o afundaria, o Titanic recebeu 6 avisos via rádio de diferentes embarcações acerca de perigosos blocos de gelo flutuante dispersos na sua rota. Aparentemente, o seu comandante, Edward Smith, estava convencido de que nenhuma força natural poderia opor-se ao mais rápido e poderoso navio do mundo. O Titanic nem sequer abrandou a sua velocidade excessiva (22 nós, ou 41 Km/h), o que foi crítico no fracasso da manobra de desvio que poderia ter evitado a colisão fatal. 

A síndrome da indiferença – um misto de cegueira e surdez – face a todos os avisos de perigo é hoje uma característica transversal à plutocracia que manda nos governos e nos mercados por esse mundo fora. Um exemplo desse comportamento indesculpável é a sua total indiferença perante o que está a ocorrer nos últimos meses nas latitudes extremas da criosfera (os 10% da área da superfície terrestre ocupadas por gelo permanente). No passado 19 de Junho foram atingidas nalgumas zonas do Círculo Polar Árctico temperaturas de 45º C (o que seria imenso até para a nossa Amareleja!). Na povoação russa de Verkhoiansk (67º 33’ N), que costumava ter uma média em Janeiro de – 50ºC, o termómetro subiu agora aos 38ºC (a mesma temperatura em Las Vegas). Na cidade mais setentrional do mundo, Norilsk (69º 21’ N), a imensa mina de níquel rasgada pelos escravos do Gulag de Estaline, o permafrost (solo e rocha que estiveram permanentemente gelados durante centenas de milhares de anos e que correspondem a 60% do território da Rússia) entrou em colapso, provocando a ruptura de um depósito onde se encontravam 20 mil toneladas de diesel, que agora contaminam a bacia hidrográfica do rio Pyasino. No extremo oposto, no Pólo Sul, a estação científica norte-americana aí localizada registou nos últimos 30 anos um aumento da temperatura média de 0,6ºC por década, o triplo da média mundial (0,2ºC). 

Já há muito que se considerava a criosfera como um dos sistemas naturais mais ameaçados pelas alterações climáticas antropogénicas. Contudo, os modelos têm subestimado a velocidade do seu colapso (principalmente no Árctico, Gronelândia e Antárctida), bem como do pernafrost. Tudo indica que esse processo já começou, e com isso as alterações climáticas e seus impactos serão intensificados por 4 razões: a) o desaparecimento do efeito de albedo no Árctico vai aumentar o calor absorvido pelo oceano; b) o derretimento do permafrost vai iniciar a libertação de cerca de 1, 5 biliões de toneladas de carbono orgânico (mais do dobro do carbono existente hoje na atmosfera…); c) os mega-incêndios boreais transformarão as florestas de sumidores em fontes de carbono; d) finalmente, a subida do nível médio do mar irá causar a ruptura de muitas regiões costeiras, ainda neste século. Não me comove o destino dos poderosos que aceleram o Titanic global, rumo à catástrofe. Mas não me saem da cabeça os versos de Augusto Gil: “Mas as crianças, Senhor/Porque lhes dais tanta dor?” 

Viriato Soromenho-Marques

Publicado no Diário de Notícias de dia 4 de Julho de 2020, página 16

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Paulo Rodrigues

“Talvez tenha sido um erro procurar entender o significado do mundo quando a nossa primeira tarefa deveria ter sido a de lhe criar um.”
Naguib Mahfouz “O Açucareiro”