No início deste século, o pensador canadiano Thomas Homer-Dixon (1956) cunhou uma expressão que me parece captar com subtileza os males fundamentais da nossa época, a todos os níveis e escalas: a “lacuna de criatividade” (ingenuity gap). Por outras palavras, se colocássemos numa pista de atletismo, como se fossem dois corredores, os problemas que se colocam à humanidade, competindo contra as soluções disponíveis, só os distraídos ou os vendedores de ilusões seriam capazes de negar que cada vez mais os problemas parecem tomar a dianteira sobre as soluções no caminho para uma inquietante meta. As “soluções” não só surgem, invariavelmente, depois dos prejuízos, como tendem, pelo seu desajustamento, a tornar tudo ainda mais complicado e retorcido.
Contudo, a corrida ainda não terminou. Em todo o lado ocorrem sinais positivos de resistência, individual e colectiva. A luta dos jovens em todo o mundo contra a OPA hostil que este capitalismo, desregulado e ultraliberal, lançou sobre o seu futuro, transformando a Terra num planeta cada vez mais entrópico e inabitável, mostra como os actos de firmeza ética individual se podem transformar em acção política. O protesto de Greta Thunberg, e a acção judicial de 6 jovens portugueses, aceite pelo Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, contra a inacção dos Estados perante as alterações climáticas, são disso um claro exemplo. O mesmo se poderá dizer do papel desempenhado por um punhado de repórteres no escândalo do SEF, como foi o caso de Fernanda Câncio e Valentina Marcelino, no Diário de Notícias, e de Joana Gorjão Henriques, no Público, nunca desistindo de servir a essência da sua profissão, que consiste, na concisa expressão de Hannah Arendt, na procura e protecção das verdades de facto, por mais incómodas que estas possam ser para os interesses dos poderosos. Também, colectivamente, há indicadores de esperança. Os 7 milhões de norte-americanos que ditaram a derrota eleitoral de Trump, não só desfizeram uma conjura por ele urdida com antecedência para vencer nos tribunais o que perderia nas urnas, como revelaram a validade de uma lição histórica inabalável: um canalha pode ocupar os mais altos cargos de Estado, mas jamais poderá ser um grande estadista.
A criatividade que nos falta para merecermos um planeta habitável, onde ninguém fique de fora, prende-se sobretudo com a incapacidade das instituições, em particular com o modo como a esfera política, nos últimos quarenta anos, abdicou da sua tarefa matricial de guardiã do futuro em favor da avidez pulsional dos mercados. Contudo, isso não nos autoriza a ficarmos cegos à miríade de actos de bondade que povoam o mundo, aos múltiplos gestos de gentileza, generosidade e coragem entre desconhecidos, como o de António Doce, agente da PSP, assassinado, fora de serviço, por proteger uma mulher vítima de violência doméstica, ou o de José Brito que, sem hesitar, se atirou ao Tejo para salvar um homem de morte por afogamento. Mesmo quando tudo parece vacilante e eventualmente perdido, permanece válida a máxima de Mahatma Gandhi: “Sê a mudança que queres para o mundo”.
Viriato Soromenho-Marques
Publicado no Diário de Notícias, edição de 19 de Dezembro de 2020, página 8.